De alguma forma, a Alemanha, um país onde o governo está fortemente comprometido com a energia limpa, está se preparando para acender as usinas de energia a carvão. O movimento é ainda mais impressionante considerando que representantes do governo teimam em não reativar as mofadas usinas nucleares, ou mesmo reconsiderar o calendário para aposentar as que continuam ativas. É uma situação espantosa para uma nação que muito recentemente anunciou que logo atenderia a todas as suas necessidades de energia com luz do sol e brisas de verão.
“Um projeto que oferece a base legal para queimar mais carvão para gerar energia está percorrendo seu caminho no Parlamento, com o objetivo de impulsionar a produção das chamadas usinas de reserva, que são usadas de forma irregular para estabilizar o sistema e estão programadas para desativação nos próximos anos”, informou a agência pública de notícias Deutsche Welle, na semana passada. “O ministro da Economia alemão, Robert Habeck, recentemente descreveu sua política energética atual como ‘uma espécie de queda de braço’ com o presidente russo, Vladimir Putin”, acrescentou a reportagem, em referência à redução no fornecimento de gás natural feita pela Rússia para os países que impuseram sanções depois da invasão da Ucrânia.
Sem dúvida, a retaliação de Putin contra a Europa Ocidental elevou os preços da energia e aumentou as preocupações com os meses escuros que virão depois de um inverno frio. Mas, assim como as mazelas dos preços dos combustíveis nos Estados Unidos, os problemas da Alemanha são anteriores à guerra na Ucrânia e estão intimamente ligados aos objetivos da classe política do país sobre o futuro da energia, na ausência de um plano realista para atingi-los. Em 2011, depois que um terremoto e um tsunami desencadearam um desastre na Usina de Energia Nuclear de Fukushima Daiichi, o governo alemão renovou seu compromisso de fechar todas as usinas nucleares e obter eletricidade com o vento e a luz solar. A decisão foi motivada pelos medos públicos em relação à energia nuclear, mas também pela forte insistência em que essa fonte de energia não tem lugar em um futuro sustentável.
A energia eólica foi culpada por um blecaute em 2016 na Austrália que interrompeu o fornecimento de energia elétrica para 850 mil casas
“A Alemanha estará à frente da concorrência nessa questão e vai ganhar muito dinheiro, então a mensagem dos concorrentes industriais é que você não precisa basear sua política energética na nuclear ou no carvão, mas nas fontes renováveis”, declarou Shaun Burnie, do Greenpeace, à BBC, na época.
Mas “a energia nuclear está muito próxima do mesmo tom de verde que as fontes mais renováveis”, quando você compara os componentes de mineração e a manufatura de cada abordagem, escreveu Gail H. Marcus, especialista em energia, para a revista Physics World, em 2017. E a energia nuclear é confiável — o sol nem sempre brilha, e o vento nem sempre sopra, o que significa que a eletricidade gerada por essas fontes oscila, o que é um grande problema para as redes que requerem um fornecimento de energia estável.
“Grandes volumes de eletricidade intermitente geram grandes oscilações no fornecimento que a rede precisa administrar”, noticiou a Bloomberg, em janeiro 2021. “A questão não está confinada à Europa. A Austrália tem tido problemas emergentes na transição para uma rede mais limpa. A energia eólica foi culpada por um blecaute em 2016 que interrompeu o fornecimento de energia elétrica para 850 mil casas. A nação está investigando o armazenamento como uma solução e foi a primeira a instalar uma megabateria de 100 megawatts.”
Meses depois, quando a Europa sofreu uma “estiagem de ventos” que deixou as turbinas ociosas, o desafio da energia renovável se tornou ainda pior.
“Durante o verão e o começo do outono de 2021, a Europa vivenciou um longo período de seca e baixa velocidade dos ventos”, escreveu Hannah Bloomfield, pesquisadora do clima na Universidade de Bristol, em outubro de 2021. “O tempo incrivelmente claro e tranquilo pode ter sido uma boa razão para não pegar os casacos de inverno, mas a ausência de ventos pode ser uma questão séria quando consideramos de onde pode estar vindo a nossa eletricidade.” Bloomfield enfatizou que um fluxo confiável de energia requer “outras fontes renováveis, como a solar, a hidrelétrica e a habilidade de administrar bem a demanda de energia”. Claro, até que existam suficientes fontes diversificadas de energia renováveis e confiáveis com que contar, as luzes vão se manter acesas por meio de fontes hoje desfavoráveis, mas confiáveis, como carvão, nuclear e gás natural. Mas, se você está na Alemanha e em uma guerra fria reavivada com a Rússia, que é a principal fonte do seu gás natural, suas opções são limitadas quando seu oponente fecha as válvulas e os gasodutos.
“A maior economia da Europa está oficialmente enfrentando uma escassez de gás natural e está ampliando um plano de crise para preservar as fontes, enquanto a Rússia fecha as torneiras”, noticiou a CNN, em 23 de junho. “A Alemanha iniciou a segunda fase de seu programa de emergência do gás em três etapas, dando mais um passo na direção de racionar o fornecimento para a indústria — um passo que vai representar um enorme golpe para o coração manufatureiro de sua economia.”
O impasse é ainda maior se você acabou de fechar metade de suas usinas nucleares e insiste em fechar o restante delas em questão de meses, enquanto seus problemas relacionados à energia se intensificam.
Em contraste, a vizinha França planeja construir 14 reatores nucleares por causa (não apesar) de suas metas ambientais
“No momento, apenas três usinas nucleares ainda estão conectadas à rede de energia da Alemanha”, noticiou a Deutsche Welle. “Na atual conjuntura, elas estarão fechadas até o fim de 2022, como parte da total eliminação dessa polêmica fonte de energia no país.”
O Partido Democrático Liberal, um liberal clássico e o menor partido da coalizão do governo, discorda dessa política, assim como de boa parte do que seus parceiros fazem. Mas seus representantes têm sido basicamente reduzidos ao papel de Cassandra — ignorados mesmo quando suas profecias se realizam. E é por isso que um país há muito tempo cem por cento comprometido com a energia renovável está se preparando para acender as fornalhas de carvão. Assim como para o racionamento de energia, casas mais frias e diminuição na produção.
“Seja qual for o caminho escolhido pela Alemanha, o Instituto Alemão de Pesquisa Econômica, o centro de pesquisa científica Forschungszentrum Jülich e a Associação Alemã das Indústrias Hídrica e de Energia (BDEW) concordam que a perda do gás natural russo não pode ser totalmente resolvida com outras fontes de energia”, acrescenta a Deutsche Welle. “Eles dizem que menos energia precisa ser consumida de modo geral.”
A situação da Alemanha é um testemunho preocupante de aonde é possível chegar se você se comprometer com uma ideia de futuro “verde” que não tem lugar para a fonte de energia mais confiável e relativamente limpa. Em contraste, a vizinha França planeja construir 14 reatores nucleares por causa (não apesar) de suas metas ambientais. Essa atitude reflete a avaliação da analista de energia Gail H. Marcus e é compartilhada pela Agência Internacional de Energia (IEA) intergovernamental. “Um aumento na operação de longo prazo do parque nuclear existente e de quase o dobro da capacidade anual é necessário”, para atender às metas de energia limpa até 2050, especifica a organização.
Imagens de um futuro mais limpo baseado em tecnologias que sejam mais eficientes e menos poluentes são louváveis e compartilhadas por praticamente todos. Mas para chegar lá é preciso planejar e tomar decisões realistas. Infelizmente para o povo alemão, a maioria de seus líderes políticos contou com desejos e pó mágico para criar uma utopia verde e, em vez disso, gerou pedaços de carvão.
(Este artigo foi escrito originalmente para a revista Reason e está no link https://reason.com/2022/06/24/green-germany-prepares-to-fire-up-the-coal-furnaces/)